sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

pacto expresso

tarefa:
2. diogo vai investigar sobre como é ser avó e sobre como perdeu sua religião

"Quando eu crescer, quero ser metáfora"
Diogo Liberano


Portanto, ser avô ou avó é estar delicadamente fadado a doar-se. Como fosse ser dedicado, pela vida construído e talhado e cosido e de novo costurado, unicamente pelo outro. Ir sendo avó é ir dando as mãos ao tempo e se fazendo osso, menos carne, menos tormento. É se tornar relógio. Relíquia. Móvel. Poeira. É ir construindo um olhar que pousa, olhar que abraça e traz em seu interior um silêncio que basta. Ser avó é ser poesia viva. Expressa. É não ter mais que falar nisso, nem naquilo, nem que pegar o trem, nem que acender a luz, nem fósforo, nem vela. É poder se mijar todo. É romântico até dizer chega. É moderno até se tornar incompreensível. Ser avó é ser pai de muitos muitos filhos. É ser destino.

Tenho quatro avós. Os por parte de pai, ainda vivos. Avós que são tempo, pois continuam em minha vida mesmo sem que eu os veja ou sequer os ligue. Ligue no telefone, ligue andando pela rua. Ligue em lembrança corrida. Dos outros dois, que se cravaram em mim, por outra via, sei apenas que morreram. Que se foram. Meus avós inauguraram em mim a morte. Que estranho. Que doce sorte.

Eu me levantei agora e fui rodar pela casa. Encontrei minha mãe no meu quarto dobrando toalhas e pedi que ela definisse o que é ser avó em apenas uma palavra. Ela reclamou. Uma só? Eu disse que aceitasse o jogo. E saí rumo à sala. Lá, pedi a minha irmã a mesma coisa. Comi uma sobremesa de morango. E as duas se encontraram na sala. Olharam-se. Eu perguntei e aí, encontraram a palavra. Minha mãe disse ser avó é reviver. Minha irmã, deitada ao sofá, disse envelhecer. Eu disse ótimo, adorei e vim correndo para o computador escrever.

[eu percebi agora, abrindo ao blog, que perdi tudo o que havia escrito sobre reviver. pois que fique claro, que reviver, ao meu ver, não é só viver de novo (observando a vida correr no corpo dos outros), mas também, reviver no sentido de ver outra vez toda a vida nos outros acontecendo. a imagem mais concreta do tempo não é o relógio, é o envelhecimento. tempo avô].

Segue o trecho de um texto que escrevi em 1006. O texto é chamado A LIMPEZA DAS HORAS e consistiu, durante certo tempo, em parar um segundo e ficar resvalando em meio ao tempo, por meio de palavras. Num destes dias, encontrei a palavra avô:
01:52. Outra madrugada. Venta muito. Toda natureza morta faz um som boboca.

Escrever sobre outra madrugada é escrever sobre a madrugada anterior. Por sobre ela, pois as condições climáticas são outras. E agora, há tanto vento, que sinto calor por ter me trancado dentro desse cômodo, evitando a revoada dos objetos domésticos, que decidem dançar e cantar quando há brisa. Preciso privá-los dessa liberdade. Pois se começam a fazer barulho, dançando e cantando ao som do vento, silencio-os porque temo o que os vizinhos possam traduzir dessa sinfonia tardia.

Mas, falava sobre as horas, e sobre o seu insuportável senso de limpeza. É um vício tão evidente, o de limpar-se depois de morrer, que o tempo deixa claro que ele passou mas que já está à venda de novo, fazendo ponto, atrás de um ponteiro novo, ereto no começar de outro dia. Mas não me diga que tempo é dinheiro, porque eu ainda não consegui comprar nem mesmo um par de horas novas para nelas agendar meu almoço e minha janta, tão em falta, ultimamente. Não me diga que tempo é dinheiro, porque se isso fosse verdade, aqueles relógios que ficam apitando, desesperadamente apitando, em plena avenida central, não estariam ali. Não por aquele preço.

Pergunto. Para onde vão as horas passadas? Em que vão se meteram que não as encontro? Não mais me sirvo das recordações de papel. Fotos, jornais, os filmes que nunca vi. São simulacros, vinho ao virtuoso. Nem cheiro adianta, porque ele se perde com o vento. E hoje venta tanto. Quero saber se elas transcendem. Se as horas que passam estão escondidas num lugar especial, aguardando um dia do fim do mundo para voltarem todas contra o tempo opressor. Ansiosas pelo regresso, trazendo consigo pedaços de cada abraço, de cada beijo, de cada filho que ficou. E o meu avô? Por acaso, nesse dia em que o mundo acabaria, voltaria ele, ainda que taciturno, imerso nas horas que um dia o tempo de mim levou?
Se ser avó ou avô é envelhecer, então, envelhecer é se tornar avô. Das coisas, das mudanças, se tornar avô é a expressão clara de quem vê agindo através do tempo toda a ordem do movimento. É ver os cabelos crescerem caírem crescerem e irem dormir. É ver nos dentes o sol se deitar, ver no sexo a calma da mocidade surgir. Na pele, o sarau de pêlos vividos. Pelo câncer, ser avô é ver dentro de si ir se desenvolvendo o recalque, o reprimido. É envelhecer porque as novidades são demais, às vezes. Envelhecer de tanto usar. Envelhecer por parado à soleira da porta, ir sentindo dentro de si os ossos uns nos outros se encostando sem gelatina que os costure. Poxa, ser avô é envelhecer de tanto ir. É persistência elevada ao verbo seguir.

É ser mãe e pai de muitos espermatozóides e óvulos. É ter gozado abundantemente. É ter sobre si um mistério e uma educação reluzindo, relutando, dando nome e aparência bela, angelical. É ter assento preferencial mesmo sem ter. É ter cabelos brancos e brilhantes. É não ter mais o que se perdeu. É ter apenas hoje a lembrança.

Ser avô é ser amigo da morte. É ser visitante assíduo de cemitérios. É acompanhar a vida por completo. Dos inícios aos fins. É ter história para contar. Ser avô ou avó deve ser algo assustadoramente revelador. Porque é ser-saudade.

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Eu não perdi a minha religião. Eu nunca a tive. Quando eu vim a saber o que era, eu já tinha ido a tantas missas, que a lógica se debatia com a chatice pregada. Eu não aguentei quase nada. Talvez aos doze anos eu já tinha desistido de ser fiel a Deus. Fui ser fiel a mim. Fui ser, desde muito cedo, fiel aos desejos. Aos meus.

Quando na época do vestibular, certa noite (antes de uma prova decisiva) resolvi rezar, pedindo por sucesso na empreitada do dia seguinte. Foi quando eu percebi que eu só rezava, quando rezava, para pedir algo para mim mesmo. Fiquei horrorizado, me senti burguês, me senti todo equivocado. E tudo era tão subjetivo. Deus era algo tão abstrato. Deus era tão onipresente que tão rápido se fez para mim onimpotente. Não servia, não tinha lógica nem graça.

Minha religião então virou poesia. Meu deus virou metáfora. Virou o que sempre foi, metáfora.

Daí, hoje, não tenho problemas com isso. Crença, fé, devoção, tudo pode servir a qualquer objeto, a qualquer destinatário. A religião em mim se acabou quando eu percebi que ela era minha e não do mundo. Acabou quando conversando com Deus, ou Jesus (eu nem os sei diferenciar!), eu menti e depois fiquei pensando, bom, se ele sabe tudo então deve saber que estou mentindo. Qual era a graça nisso? Não houve mistério entre a gente. A gente não se flertou. Se ele sabe tudo, amado, então resolve o mal estar da civilização. Se Deus sabe tudo então escreve uma enciclopédia com verbetes e não com ladainha.

A Bíblia é tão literatura quanto Harry Potter. Só que eu gosto mais de Harry Potter, porque em suas aventuras a fé move montanhas mesmo (com ajuda de uma varinha de bruxo, é claro). Eu gosto mais de Harry Potter porque ele é um Jesus pós-moderno. É inglês, não fala em aramaico. E olha, vende tanto quanto a Bíblia. E mais, foi escrito por uma mulher e não por pseudônimos.

A fé em mim não acabou. A religião também não. Mas se recria em mim todo dia a cada necessidade. Eu não sofro porque nunca comi uma hóstia. Eu nunca consegui me catequizar. Eu fui expulso várias vezes da catequese, como acreditar em Deus? Hoje eu prefiro confessar meus pecados em meu Blog. Eu prefiro tornar tudo isso criação. Deus é uma coisa muito errada que inventaram para acalmar a multidão. Bem que poderíamos ter apostado por mais tempo na poesia do Pão e Circo. Sorte a minha a arte ter me invadido.

Eu prefiro café do que fé. Tem um performer, Francis Alÿs, que me fez pensar a fé por um viés muito mais potente e inteligente daquilo que até então eu tentava crer. A primeira vez que ouvi falar dele e vi algum material sobre, foi numa aula do curso de Dramaturgias do Corpo, dado pela professora Eleonora Fabião, na UFRJ. O nome de uma das performances do cara era Quando a fé move montanhas. Ele simplesmente juntou cerca de 400 estudantes de engenharia e juntos, com auxílio de pás, moveram uma duna de lugar. É isso mesmo, fé é uma coisa muito concreta. Mais do que parece.



Façamos, pois, da fé, uma força capaz de mover.

Mais sobre Francis Alÿs em http://www.oesquema.com.br/conector/2007/10/30/bienal.htm.

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